o que fica do caminho

foram “O Diário de um Mago” de Paulo Coelho e alguma loucura que me levaram, em 2003, ao Caminho de Santiago. a ele regressaria nove anos depois, já trintona, para nele depositar todas as minhas desventuras, descrenças, desavenças com a vida… e receber alguma luz. fi-lo mais duas vezes, largando já o trajeto Português e aventurando-me em novas rotas e propósitos: o Sanabrés em 2013 e o Inglês em 2015. percebo agora que não foram 4 caminhos, mas um só. todo um ciclo pelo qual sou profundamente grata. por isso hoje, Dia de Santiago, resumo e partilho o que fica desta peregrinação.

  • o Caminho não se esgota numa rota jacobeia. começa depois, quando regressamos a casa. e nada nos prepara para esse regresso – para, transformados internamente, seguir sem etapas planeadas ou setas a orientar-nos. preocupamo-nos demasiado com a preparação para partir, se vamos conseguir. e, afinal, só precisamos de ir de peito aberto, prontos para amar o que o Caminho nos dá. no depois, ajuda mantermos contacto com a natureza, com o nosso diário de peregrino e silenciar… até as peças se encaixarem e virarem puzzle resolvido.
  • o Caminho desvia-se de estradas, é feito de curvas e contracurvas, subidas e descidas, montanhas e riachos. sim, seria mais fácil e rápido seguir pelo asfalto. mas também a vida não é uma reta, não se faz de um ponto A a B. então não nos iludamos – não vale a pena desviarmo-nos das setas amarelas.

  • às vezes há encruzilhadas onde temos de escolher ir para um ou outro lado. se estivermos bem fisicamente, vale bem a pena o trajeto que promete ser mais longo e difícil porque a recompensa também promete ser maior. os atalhos podem ajudar a chegar mais rápido mas não nos preenchem.
  • também não vale a pena a pressa, acordar mais cedo, parar menos vezes, querer chegar primeiro. o objetivo é peregrinar, não competir. a haver qualquer competição é connosco e não com os outros. então demoremo-nos. abrandemos. quem se excede põe a peregrinação em risco. estou em crer que alguns nem o fizeram e não o sabem. o Caminho é mais importante do que o destino.

  • alturas há em que, por excesso de confiança ou distração, deixamos escapar alguma seta. perdemo-nos, temos de voltar atrás e recomeçar. assim é quando para aqui andamos distraídos, negligentes connosco, às rodas por teimarmos não aprender. estar presentes, inteiramente no aqui e agora, é essencial. responsabilizarmo-nos pelas nossas escolhas e pedirmos ajuda também.
  • o Caminho é feito por etapas e com uma rede de albergues para se pernoitar e descansar. talvez se precise de tantas horas de carro como de dias a pé para chegar a Santiago, mas aprende-se que as metas se atingem com a paciência de um passo atrás de outro, escutando o nosso corpo, largando pensamentos e emoções que já não nos servem, respeitando o nosso ritmo mais natural. e, mesmo cansados ou com pés a doer, seguimos até ao albergue mais próximo, sabemos que a cada etapa concluída um eu morre e outro nasce. e isso é tudo o que temos de lembrar quando, no nosso dia-a-dia, nos cansamos e queremos baixar os braços… que o Caminho faz-se a caminhar, que há sempre um lugar seguro para recuperar e que, a cada lugar seguro encontrado, inicia-se uma nova busca. até Santiago. até à nossa morada final.

  • no Caminho pouco interessam profissões, idades, quaisquer estatutos sociais. é-se peregrino, ali nos bastamos com o pouco que levamos numa mochila, e qualquer que seja a razão de cada um ali estar, todos seguimos o mesmo destino, um propósito maior. sentimos que uma teia invisível nos une e encontramos a nossa essência no outro.
  • são muitas as horas passadas no meio da natureza e no silêncio (ou no burburinho da nossa mente), a sentir os pés na terra e a mochila às costas, a confundir as batidas dos cajados com as do coração. despertamos para a simplicidade, para a naturalidade, para a beleza, para o pouco de que precisamos, para o sentido de vivermos mais devagar. mas, para isso, não vale levarmos o telemóvel ligado, seguirmos em grandes grupos, despacharmos a mochila, carros de apoio… saibamos estar a sós e a gerir o peso que conseguimos carregar.

  • haverá sempre uma fonte de água para recarregar o nosso cantil ou relaxar os pés. haverá sempre um hospitaleiro que cuidará dos nossos maiores cansaços, físicos e emocionais. a providência do universo é infinita. é preciso ter presença e confiança para a acolher.
  • chegar a Santiago é chegar a casa. abraçá-lo é afagar o nosso melhor amigo e dizer-lhe “obrigada”. e é sentir cá dentro, com toda a clareza, “ah! foi para isto que caminhei!”. por isso também os desejos que planeamos pedir-lhe podem mudar de sentido ou tornam-se sementes em terreno fértil. porque o Caminho transforma-nos. porque se dá uma profunda conexão connosco, com o outro, com o divino (o que quer que isso represente para cada um). e esse é o porquê de tanto o querermos, de lá voltarmos. não é um sacrifício. é uma enorme alegria.

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