lembro-me da primeira noite deles lá em casa. tínhamos acabado de mudar e, na sala, havia apenas um tapete grande ainda enrolado no chão. foi ali, na sala, que os deixámos a dormir, para que não se perdessem – os dois gatinhos eram tão pequeninos que cabiam nas nossas mãos! lembro-me de ter acordado a meio da noite e de os ter ido espreitar. estavam escondidos dentro do rolo do tapete e, pressentindo a minha chegada, saíram pata ante pata a ver o que se passava. e logo ali lhes conheci as diferenças: a Pantufa à frente, de olhos bem abertos, mais atrevida e curiosa; no seu encalço, quase sombra, a medo e com olhos quase cerrados… o Ursinho.
acredito que não há de ter sido por acaso que, na doença e na morte, 10 anos depois de terem entrado nas nossas vidas, também ela tenha ido à frente, como se tivesse escolhido preparar terreno – para nós, que tínhamos de aprender a lidar com tamanha perda, e para o Ursinho, irmão de sangue, acabado de ser diagnosticado com a mesma doença, e tão frágil ainda.
fizemos tudo por ela: internamentos, exames, medicação, alimentação especial… mas estávamos cegos com o medo de a perder (uma forma de egoísmo) e durante algum tempo resistimos à opção que se impunha: eutanasiar. hoje sabemos que não lhe demos a paz que merecia e também nós, durante muito tempo após a partida dela, não ficámos em paz.
chegada a vez do Ursinho adoecer, reconhecemos o quanto ela nos tinha ensinado e doseamos o apego, saindo do nosso lugar para nos colocarmos no lugar dele, respeitando o seu ritmo, observando a sua vontade, deixando-o ser quem é. ainda fomos à procura de um novo veterinário e mudámos quando o coração confiou e se alegrou com a sensibilidade de quem não segue às cegas exames e análises e sabe que a cura também é feita de casa e afetos. e assim reduzimos o internamento ao mínimo necessário e reduzimos tratamentos e medicação sempre que o stresse gerado era contra uma vida digna e com qualidade.
e ele revelou-se forte, destemido… ultrapassou várias crises, tantas quantas aquelas em que eu o olhava e dizia não estar preparada para me despedir. tornou-se o nosso herói.
morreu no passado dia 7 de junho. também tivemos de recorrer à eutanásia, mas desta vez com a certeza de que tínhamos sido melhores e que dele não podíamos exigir mais. era hora de o deixar descansar. ele mesmo nos mostrou que chegara o momento: tinham-se passado semanas de algum desvario, em que ele recusava colo e se refugiava em cantos só seus… mas na última noite procurou-nos na cama e foi alternando poiso entre o meu colo e o do meu marido. como se se despedisse. a manhã que se seguiu também foi de colo. procurou-me, olhou-me e deixou-se embalar. cantei para nós, para nos acalmar. falei-lhe de missão cumprida e da nossa gratidão. prometi que ficaríamos bem e que ele teria novamente a Pantufa a conduzir caminho.
adormeceu em paz. e só depois percebi que, afinal, naqueles últimos momentos, não tinha sido eu a dar-lhe colo mas ele a mim, porque ficou aquele quentinho no meu peito. foi como se ele tivesse aberto o meu coração e colocado uma chama do seu coração no meu e o nosso amor cresceu, ligou-nos para sempre e deixou-nos também em paz.
para quem entende deste amor e possa ter de passar pela decisão difícil de eutanasiar, deixo as nossas humildes recomendações:
- procure sempre um veterinário da sua máxima confiança. se tem alguma dúvida, não hesite em procurar uma segunda (ou terceira!) opinião e mudar se sentir que é o melhor para o seu animal;
- internamentos longos e tratamentos intensivos são altamente stressantes, por isso pondere bem todas as variáveis e opte por aquilo que traz maior valor à qualidade de vida do seu amigo;
- a eutanásia só se justifica, de acordo com a Ordem dos Médicos Veterinários, no caso de “doença incurável em que a qualidade de vida do animal esteja de tal forma comprometida que a solução mais humana é efetivamente pôr termo ao seu sofrimento”. então pergunte-se: é o caso do seu animal? já fez tudo o que podia por ele? há qualquer hipótese de melhoria? está a viver ainda com alguma dignidade e bem-estar (reage aos seus estímulos, mostra-se bem, brinca, come, bebe)?
- ponha de lado qualquer egoísmo dissimulado (apego, resistência, medo, responsabilização) e esteja presente para o seu animal… trata-se do sofrimento dele e não do nosso, por isso observe-o, sinta-o, esteja atento aos sinais e lembre-se: às vezes precisamos de abrir mão do controlo e deixar fluir, desapegar, libertar… e livres manifestamos o melhor de nós e seguimos leves;
- no momento de o “adormecer”, seja forte e esteja também presente: é importante a sua companhia e a sua voz. agradeça. envie-lhe amor e luz. e, se assim o entender, peça ajuda aos seus anjos e mestres;
- depois então chore, desabafe com alguém que lhe seja próximo, escreva (num diário ou numa carta para si mesmo) o que lhe vai na alma. sim, haverá muita gente a achar isto ridículo. não se preocupe com essas pessoas. preocupe-se em cuidar de si e substituir rapidamente a dor pelas melhores memórias… deixe-se ir com o vento, solte alegria, solte gratidão, sinta-o leve e livre.