ensinaram-nos a não contar nada antes de completarmos os três meses. porque podia haver problemas. risco de aborto. e o problema-aborto tomou, assim, um peso silencioso que ninguém quer discutir, desenvolver, entender. não se fazem perguntas. ninguém nos ensinou a fazer perguntas. ou não se quer perceber, sentir, essa realidade: a de a natureza ser como é e haver embriões/fetos que não encontram condições para se desenvolverem, como uma flor que morre sem água e sol, uma semente sem terra fértil.
quando me confirmaram a “gravidez não evolutiva”, “nenhuma atividade cardíaca”, a “necessidade de provocar um aborto”, estava eu com quase 2 meses (desculpem-me, não cheguei a habituar-me, diz-se 7-8 semanas), fiquei sem chão. então dissemos: lá vamos ter de contar que não foi desta. pasmou-se a médica: mas já contaram?! não deviam!
ensinaram-nos que não devíamos contar aos outros antes de completados os três meses, perdão, 12 semanas. mas que sentido tinha não contar o que nos enlouquece de felicidade como o que nos destroça, como se, com quem partilhamos abraços, não pudéssemos partilhar colo. que sentido mantermo-nos coerentes com uma sociedade que não acolhe o feio, o frágil, o deficiente, o assim-assim, a não-realização, como se tudo isso não fizesse parte de nós. e que sentido faz alimentar conversas e redes sociais só com estórias perfeitas, imagens perfeitas, barrigas perfeitas, ecografias perfeitas, e se silencia tudo o resto.
não faltam literatura e blogues sobre maternidade, gente próxima pronta a discutir peripécias das gravidezes, dicas sobre enjoos, amamentação, falta de descanso… cenários mais ou menos românticos, mas sempre recompensados. como as dores de parto. e o que esteve antes, no meio, já depois para uma enorme quantidade de mulheres? dores de parto sem parto. silêncio. omissão. vergonha. culpa. dor.
há quase três anos que tentamos ser pais. neste período somamos dois abortos (o primeiro teve de ser provocado, o outro foi espontâneo). um mais sofrido que outro, dores físicas e emocionais desmedidas, esperanças e fés desgovernadas. e eu queria falar-vos disto: que bom ter-me precipitado a dizer “estou grávida”, porque aprendi também a reconhecer a natureza de que somos feitos e a dizer com naturalidade “abortei”. porque cada uma das pessoas com quem partilhei a minha história devolveu-me histórias iguais. porque entendi a anormalidade com que se tratava um assunto que era normal e que isso nos deixava ainda mais marcas profundas. as estatísticas não ajudam, não são sérias, misturam as interrupções involuntárias com as voluntárias, não registam todos os casos, casos que até as próprias mulheres desconhecem porque confundem aborto espontâneo com menstruação atrasada. mas os médicos garantem que uma em cada sete gravidezes acabam em aborto espontâneo, o que representa mais de 25% delas. é uma complicação mais comum do que julgamos e, no entanto, ninguém nos prepara para ela.
entendi desde cedo que falar ajudava e, no entanto, aqui no blogue, fugiram-me as palavras, os momentos, e diziam-me “tens de te resguardar”. ainda passei por uma depressão. ainda caminhei sozinha, longamente, dentro de mim, para entender mais, conhecer-me melhor, quando exteriormente tudo me calava. restou-me descobrir que este silêncio nos prende, constrange, bloqueia… e não mais faz sentido continuarmos a viver em coerência com esta sociedade que cala e que cria doenças e tabus à volta de tudo o que não é perfeito e romântico e nos mete medo.
o caso recente da ilustradora Paula Bonet, que veio a público falar disso mesmo, reacendeu a certeza que tinha de o fazer: falar. sim, temos de falar disso. de quem perdeu fetos, de quem perdeu bebés, de quem nunca os terá sequer ou nem sequer os quer ter. porque essa é a natureza da mulher. e porque, mesmo que não se apaguem todas as dores, apagam-se silêncios, menosprezos, despeitos. exige-se mais informação e acompanhamento nas consultas de planeamento familiar e nas intervenções que se seguem. pede-se diálogos mais abertos e bondosos na hora de discutirmos o conceito de família, de sucesso, de felicidade. acendem-se a esperança, a força e a coragem de voltarmos ao caminho.
e eu quero dizer: sofri dois abortos, são marcos que o meu coração-útero não apagam, e, todos os meses que se seguem, deprimo a cada menstruação e a cada teste de gravidez falhado. mas também quero dizer: está tudo bem e tenho saboreado cada aprendizagem, cada bênção escondida atrás deste processo (basta estarmos bem presentes e atentos e encontramo-las). e um dia espero voltar a dizer: estou grávida. ou não, mas cá estarei para te dizer, mulher: somos uma só, caminhemos lado a lado, menos quilómetros, mais leves.
(nota: gratidão profunda à Dr.ª Rosa Zulmira, à Enf.ª Rosa, e ao Centro Materno Infantil do Norte… tive o privilégio de ser tão bem encaminhada, cuidada, mimada! infelizmente sei que isso não se passa com todas em todos os lados.)
Olá, gostei muito de ler este texto e já agora gostava de partilhar a minha experiência.
Sou mãe de 3 lindos filhos, 7, 9, 11 anos mas as minhas duas primeiras experiências de gravidez foram assim, como descreves.
A primeira era um feto que não estava bem para prosseguir e acabou por “sair” naturalmente (embora tenha custado bastante), a segunda um ovo claro que obrigou a internamento e raspagem do útero.
Os dois custaram bastante por tudo o que descreves mas não desistimos, deixamos a coisa rolar, sem stress e dois anos depois tivemos o nosso primeiro filho, um ano e meio depois o 2ª e dois anos a seguir a terceira.
Conheço mais casos assim, por isso, achei importante dar este meu testemunho, compreendendo a fundo o que têm sentido mas encorajando-vos a continuar a viver e a acreditar que tudo pode ainda correr bem.
Desejo-vos as maiores felicidades.
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obrigada pela partilha. ficaram esperanças 🙂
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Também sofri dois abortos espontâneos, o primeiro com 6, o segundo com 9 semanas (em janeiro e em junho de 2013, respetivamente). Foi detetado que tinha polipos no útero (e estes atuam como um DIU…a gravidez acontece mas não se consegue impantar) e que essa podia ser a causa dos abortos. Retirei-os em outubro de 2013 e em Maio de 2014 voltei a engravidar. Fui mãe da C. -aos 40 anos- em janeiro de 2015 🙂
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obrigada pela partilha e pela esperança ❤️
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Também tive uma gravidez não evolutiva, feto sem batimentos cardíacos às 7 semanas e 3 dias. Jamais esquecerei as dores físicas, mas piores ainda as dores emocionais, o mundo que me caiu em cima e a sensação de dor e vazio. Engravidei de gêmeas pouco depois, gravidez difícil sempre assombrada com o aborto interior, internada 2 meses eu ainda grávida e 2 meses elas na neotologia a lutarem pela vida pois nasceram de pouco mais de 7 meses com 1,5 kg. Uma grande luta, mas uma Vitória bem maior. Não desista!!! Muita coragem!
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❤️❤️❤️ obrigada querida Vitória. que luz tão bonita que me trouxe 🙏
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Também passei por isso (8-9 semanas)… Não da primeira filha, não do segundo, mas quando ia para o terceiro… É um tema complicado, e à partida pensamos que estamos sozinhas… mas depois de partilhar pelo que se está a passar aparecem logo várias vozes a dizer que também passaram por isso. Acho que é um assunto tabu… Mas acho que seria mais simples se se falasse mais… se nos apoiassemos mais…
Não diminui a dor nem a sensação de perda…
Hoje, o meu terceiro filho está cá, tem 17 meses e estamos cá para contar a história, mas ali entre o 2 e o 3 havia outro alguém, outro sonho…
Beijinhos e muita força! ♥
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esse “sonho” abriu caminho para o 3… era porque assim tinha de ser. cada vez acredito mais nisso. obrigada pela sua partilha. é muito bom falarmos disso. beijinhos 🙂
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Tive um diagnóstico semelhante no passado dia 30 de agosto e estou a ganhar forças para regressar ao trabalho e ao mundo lá fora… Senti exatamente o que descreve e revejo-me nas suas palavras. Foi muito reconfortante, ao fim de tantos dias, que pareceram anos, encontrar algures no Google um “espelho” que nos faz acreditar que vai correr tudo bem. Parabéns pelo blog e desejo-lhe as maiores felicidades!!!
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querida Sara, como gostava agora de puder dar-lhe um abraço apertado. envio-o daqui mesmo com todo o meu amor. sei que é difícil acreditar e entender, mas a natureza sabe mesmo mais de nós do que nós mesmas. está tudo bem. aceita, entrega, confia. não tenhas pressas de voltar ao trabalho… descansa e sê paciente e bondosa contigo mesma. e depois… continuemos a sonhar, juntas. um beijinho. se precisares de conversar, podes mandar-me mensagem no FB. ❤️🙏
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Duas. Na segunda vez a enfermeira Rosa, a mesma enfermeira Rosa olhou para mim e disse “outra vez?” E depois sussurrou-me “já é a minha segunda repetente hoje” e baixou o olhar. Podia ter sido eu a escrever este texto porque é assustador o tanto que nos une, espero que de igual forma o desfecho seja positivo para as duas e quem nem todos os meses das nossas vidaa terminem com aquele desilusão de quem sonhou por momentos que podia ser mãe. Beijinhos
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estaremos a falar da mesma enfermeira?! sonho com o dia em que vou chamá-la do piso de cima, onde se dão os partos, para lhe mostrar um bebé 🙂 até lá temos de seguir em frente com muita fé no coração! há de ser muito mais aquilo que nos une! beijinhos e um xi apertado.
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Foi a enfermeira Rosa a mesma que me acolheu quando cheguei com uma carta passada pela medica de família e que me acarinhou tanto num momento de perda. Foi a mesma que me disse para continuar a tentar mal me sentisse preparada física e psicologicamente e que me deu o seu número profissional para que a avisasse assim que soubesse que estava grávida.
Assim foi. Atendeu-me o telefone e gritou parabéns. Pediu-me alguns dados e, 5 minutos depois, tinha uma mensagem escrita com o agendamento para uma consulta com o Dr. Paulo, para que esta gravidez fosse a mais resguardada de todas. Em maio de 2016, contra as hipóteses de duas doenças autoimunes, que fazem os corpos demitirem-se de certas funções, o nosso G. nasceu.
Meio apagado, ficou o aborto. O bebé que achava ser o nosso L.
Percebi por que não devemos dizer a ninguém, não porque não seja uma felicidade, não por não devamos assumir as nossas falhas tanto quanto as nossas conquistas, mas porque não há um sistema de apoio fiel. E o que mais me doeu, é que trabalhei enquanto sangrava um filho, porque o argumento da generalidade não é utilizado como forma de apoio, mas como materialização da vulgaridade e da consequente desvalorização do aborto. É uma perda, é um luto, contudo é o nosso corpo a dizer-nos coisas.
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muito obrigada pela tua partilha! que anjo foi e é essa enfermeira!
quanto ao falar… continuo a achar importante. não acredito que o assunto se torne vulgar ou seja desvalorizado, se se apostar numa comunicação clara, honesta, consciente… não fui trabalhar porque o corpo não me permitiu e temos esse direito (baixa médica 100% comparticipada). contei à entidade patronal e a colegas (e isso gerou apoio e resguardaram-se sempre que puderam). falar com outras mulheres, e médicos, e enfermeiros, tem gerado em mim força. se ainda tenho esperanças é porque falei e ainda falo e me chegam notícias boas como a tua… e também faço o que posso para espalhar essas notícias junto de quem está mais frágil. por isso, obrigada!
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