dia de todos os santos

eram 9h30 quando saí de casa para ir ao pão. e, ao contrário do que é costume num feriado ou fim de semana, já a vila acordara e andava num corrupio, gente para lá e para cá, a sós com os seus baldes e flores ou em agrupamentos. junto à porta da florista, pouco importada com a pressa da clientela e que não abriria antes das 10h, formava-se já uma fila ordeira de pessoas. pouco depois deixaria de ser ordeira. pouco depois deixaria de haver lugares para estacionar. e pouco depois os vendedores ambulantes não teriam mais mãos a medir. mas na confeitaria ao lado do cemitério já todas as mãos eram poucas: “sim, menina, temos mais pão e de todas as variedades, só ainda não tive tempo de o trazer para aqui”, disse-me a proprietária, quando apontei para as prateleiras com os cestos vazios. lá me foi buscar um saco de seis de alfarroba e outros seis de mistura, quase contrariada com o trabalho que lhe dava, e fez-me a conta ao mesmo tempo que resmungava com a emprega: “vai buscar guardanapos para as mesas!”

no regresso a casa toda esta agitação despertou-me a memória. fazia 13 anos que saíra à rua para realizar a minha primeira reportagem, num trabalho para o professor de jornalismo. “que horror”, “que raio de ideia”, “tem algum jeito irmos agora para o cemitério e meter conversa com as pessoas neste dia”, foram as críticas que se ouviram ao sair do laboratório de jornalismo daquele ano. o inusitado TPC apaixonou-me. obrigou-me a ir naquele 1 de novembro para o cemitério, para a missa, para as floristas, para o meio de gente vestida de preto que dizia “este é o dia mais triste do ano” e outra gente para quem “recordar deve ser feito com alegria”.

não mais o esqueci, ao dia, que a religião católica decidiu estabelecer no século XI. e não mais deixei de o celebrar, assim mesmo, como aprendi ao ouvir o testemunho de tantas pessoas; e do padre rezando para a sua “assembleia” no “dormitório sagrado”; e da catequista que evocou a essência de tudo aquilo, apartada das tradições mais pesadas instauradas pela igreja. passeio então pelo cemitério e contemplo-lhe a beleza de o ver assim tão limpo, florido e cheio de vida; aprecio as famílias que ali mesmo se reúnem e cumprimentam e conversam; sorrio para cada criança ali presente – situação tão rara e salutar! – e ouço-lhes os diálogos – “é aqui que está o avô chico? aqui atrás das flores?!”; troco umas palavras com o vendedor de velas – “e então, como lhe corre o dia?”, “oh menina, está fraquinho, agora há muita concorrência”; sinto muito pelas ausências, peço perdão pelos esquecidos e esquecimentos, declaro amor eterno e gratidão a quem já partiu.

que pena não ser sempre assim e não ser tudo um enorme campo de verde onde não se diferenciam campas nem lápides. que pena não honrarmos mais quem partiu, como se isso afastasse a morte de nós próprios, quando “a morte justifica a vida”, já o dizia a catequista para aquela reportagem. catequista que por acaso é minha tia e tem nome de flor, e já sem acaso sente a amargura por quem se afasta da essência do Dia de Todos os Santos e Dia dos Fiéis Defuntos – que hoje também se celebra para aproveitar o feriado apesar de ocorrer oficialmente a 2 de novembro. “esta é uma data de reflexão para vivermos melhor”, disse-me.

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