mãe, percebo agora que nunca foi cortado o cordão umbilical que nos unia. eu sei que há provas… um hospital, enfermeiras, tesoura. eu sei que fisicamente não está lá. não se vê. mas ficou-lhe a energia, cordão de luz dourada que se estende ou encolhe no tempo e no espaço. é essa matéria invisível que faz com que também tenha em mim parte de quem já partiu. carrego a luz, o dom, a responsabilidade da avó, pois se também tu tens um cordão de luz dourada a ligar-te a ela.
talvez seja esse desnorte que me atormenta, que me enlouquece: ainda não ser mãe. sinto o peso da queda no mundo, de me ter feito humana, parte separada de um todo, com luz a estacar neste lugar que é o meu corpo. também eu preciso de gerar um outro cordão umbilical e de assim deixar-nos expandir… preciso de ter em mim parte de quem ficará depois de mim, depois de nós.
talvez assim eu consiga cumprir o propósito que aqui me trouxe e encontre a divindade que habita nas minhas profundezas. nas palavras de João Tordo (in “O Paraíso segundo Lars D.”), “talvez seja esta a resolução de toda a inquietação, o fim de toda a angústia: sabermos, no nosso interior, que toda a inquietação ou angústia são manifestações de uma mesma coisa, de um desejo de união com alguma coisa inefável que resiste a mostrar-se.”
mãe, compreendo agora que somos, todas nós mulheres, uma só. compreendo que sempre fomos, sempre seremos mãe e filha.