último dia em Santiago de Compostela
é manhã cedo mas há já uma fila à entrada da Oficina do Peregrino. da última vez que me meti nestas andanças não passei por aqui – “não vale a pena, a Compostelana é só um recuerdo“, pensei. enganei-me. não é um recuerdo é um documento histórico a que tem acesso só os milhares de guerreiros que ali passam há séculos. e quando este nos é colocado nas mãos, só nas nossas mãos, e o rosto de todos aqueles “estranhos” se ilumina, e os voluntários no local nos olham nos olhos e reconhecem a nossa felicidade e ficam também eles felizes – “congratulations! well done!” – aí compreendemos que connosco não levamos apenas um certificado ou mesmo uma credencial manchada a carimbos. não são carimbos, são tatuagens cravadas na pele, abaixo da pele, no mais fundo da nossa epiderme, contaminando-nos por dentro.
e não importa o tempo de espera pela nossa vez. não estamos perante uma fila burocrática de pessoas, mas perante um cenário de rara beleza: homens, mulheres e crianças, velhos e novos, católicos e anarquistas, todos os credos, todas as nacionalidades, todos os motivos – religiosos, espirituais, pagãos… – ali, reunidos, debaixo do mesmo céu. não lhes conhecemos os nomes, as profissões, os estilos de vida. só sabemos que percorremos o mesmo Caminho (seja qual for o itinerário escolhido) e fizemos parte de uma experiência secular e indecifrável. só sabemos que estamos lavados a pó, suor e lágrimas, com vestes de liberdade e repouso, imersos em quietude e silêncio. estamos mais fortes, completos, plenos e felizes. fizemos o Caminho de Santiago. entendemo-nos pelo olhar. pela aura.