houve um tempo em que me perturbava a curiosidade dos que me viam a partir – “por que passar por isso?” – ou dos que me viam a chegar – “como foi?”. houve um tempo que me perturbavam os julgamentos – “isso é muito duro”, ou exatamente o contrário, “esses quilómetros não são nada”. aprendi a poupar palavras porque elas nada espelham ou explicam. porque há vivências que só são nossas e estão enraizadas na estrutura do nosso ser. não se verbalizam. como explicar que é duro e não é duro? sim, são longas horas e dias a caminhar, sob terra e pedras, debaixo de sol e calor. são noites a partilhar quartos com estranhos, vestidos com a roupa lavada à mão em tanques de granito e que não trocaremos com o amanhecer. uma semana inteira longe do frenesim da vida diária, sem ouvir despertadores, telemóveis, televisores… sem pressas. sempre a guiar-nos por setas, a entregarmos o nosso destino a setas, a seguir setas, a seguir setas, a seguir setas…
mas duro?! duro não são as bolhas e os pasmos musculares, não é carregar e depender de uma mochila, não é a falta de conforto e luxo… duro é tornarmo-nos mais conscientes e sintonizados com a vida e conseguirmos levar isto para o nosso quotidiano e sabermos lidar com uma nova semiótica. ter medo?! medo de não ser capaz?! medo tenho de não conseguir lidar com toda esta luz e de não continuar o Caminho (não este, o que nos leva a Santiago, mas o que existe depois, após o regresso a casa). medo de me cegar.